Festival da…salvação



Festival da…salvação

 

“Eu sou uma underdog. Venho de um registo em que não há público. Ninguém sabia quem eu era e, quando apresentei esta canção, foi por todos nós. É por todos os underdogs que andam aí a cantar para terem uma oportunidade, há séculos, e não conseguem”. Palavras de honra de Mimicat, heterónimo de Marisa Mena, de 38 anos, a vencedora do Festival da Canção de 2023 que, pasme-se, em 2001, já tinha participado e chegado à final como Izamena.

 

É a primeira vez que uma canção de livre submissão vence. “Ai Coração” superou os convidados da organização, entre os quais campeões do streaming como Ivandro e Bárbara Tinoco, a extravagância musical de Cláudia Pascoal (vencedora em 2018) e o intrometido Edmundo Inácio, um neófito na alta roda. Para o grande público televisivo, sim Mimicat era uma perfeita desconhecida. E o facto de ter concorrido por livre e espontânea vontade é a prova cabal, mas, no meio musical, dois álbuns editados pela Sony, “For You” (2014) e “Back In Town” (2017), resgataram-na do vazio aquando da apresentação do Festival. Sim, a representação internacional de uma concorrente sem convite é inédita. Já o salto de desconhecidos, não necessariamente. E nem é preciso recuar a outras eras. Basta pensar num passado recente que muitos provavelmente desconhecem ou já esqueceram.

 

Salvador Sobral. Vencedor incontestável da Eurovisão com o clássico Amar Pelos Dois, a 13 de maio de 2017 em Kiev. No início desse ano, antes da primeira ronda de meias-finais do Festival, poucos o conheciam.Em 2016, estreava-se em álbum com o jazzístico Excuse Me, acompanhado por músicos respeitados no meio: Júlio Resende, o co-produtor, no piano, André Rosinha no contrabaixo e Bruno Pedroso na bateria. Salvador percorria um circuito jazzístico especializado com algumas ligações à pop. Tinha crédito mas, sejamos sinceros, Excuse Me, editado pela Nortesul, passou ao lado das atenções e aprestava-se a ficar esquecido. Até porque a interpretação em inglês vinha em contraciclo com um mercado cada vez mais virado para a sua língua e identidade, por exemplo através da emergência do hip-hop e linguagens vizinhas.

 

Salvador Sobral não quis usar a irmandade com Luísa Sobral para se promover. Nem uma passagem longínqua pelos Ídolos, onde até foi finalista de uma edição ganha por Filipe Pinto a cantar Ornatos Violeta. Amar pelos Dois resgatou Salvador Sobral da indigência. Deu-lhe imortalidade, história e uma segunda vida, mas a história podia ter sido muito diferente. Bastava que o voto do público tivesse prevalecido sobre o do júri. A fronteira entre um feito de proporções históricas e um erro pode ser imperceptível.

 

Podemos falar agora de Conan Osiris? Pois é, os Telemóveis podiam muito simplesmente nunca ter feito conexão com o céu. “Adoro Bolos”, o álbum de início de 2018 que o projetou entre crítica e circuitos lisboetas de estilização do chunga, revelou-o a um público maior mas não necessariamente grande. O normal era Tiago Miranda ter feito o caminho a direito habitual nestes casos. ZDB, Maus Hábitos, Musicbox, festivais como Tremor, Bons Sons, ou Aleste e alguns de escala nacional. E não seria nada mau estar entre a invisibilidade visível, bem pelo contrário.

 

O Festival, pode dizer-se, lançou-o para outros redes. Com algum risco, quer pelo desassombro da personagem, quer pela improbabilidade da canção. Mas foi a honestidade de Conan Osiris a fazer a diferença. Com polémica, contestação e desconforto das franjas mais conservadoras. Ainda bem. E tudo podia ter sido tão diferente se fosse igual a sempre…

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