Slow J – Afro Fado
Quanto há de afro no fado? Sem negar uma herança nada pacífica de ventos das arábias e de uma colonização manchada de sangue, com barcos a desembarcar em Lisboa carregados de escravos, Slow J projecta grandeza. Vale a pena olhar para a capa de Afro Fado e reconhecer Eusébio e Amália sobre o mesmo tapete. Duas figuras usadas pelo regime fascista para se higienizar, enquanto levavam o nome de Portugal na ponta da bota e da língua.
Slow J faz da casa a ambição de ser mundo, invertendo um complexo de inferioridade felizmente diluído na música portuguesa, em que se fazia crer que os patrícios só poderiam entrar nos circuitos globais se replicassem as fórmulas do exterior. Pura falácia. A identidade global é o motor do reconhecimento global, diz a história do fado, dos Madredeus e dos Buraka Som Sistema, e confirma a globalização da pop. Já são os americanos a convidar os latinos e os brasileiros, e não o inverso. Os centros de decisão da música popular estão a mudar.
Todas as linguagens exploradas em Afro Fado já existiam antes na obra de Slow J. Por exemplo, o semba na notável Casa, do inaugural The Art of Slow of Down, ou o fado em Lágrimas, mas desta vez há o assumir de uma consciência musical e de discurso. As noções culturais de terra e pátria são desconstruídas em Terra (“Eu quero voltar pa minha terra / Onde em casa me senti, nunca fui lá / Quero que a minha terra volte / E não entendo porque que ela não volta”) como uma reacção ao discurso extremista do “voltem para a vossa terra”.
Que terra? Que casa? O que é Portugal e a portugalidade? Qual o significado das fronteiras no Séc. XXI? Os imigrantes invisíveis nas cozinhas dão lucro à casa. E ao país. São eles que fazem o trabalho sujo, descontam e ainda trazem dividendos, entre o deve e o haver da Segurança Social.
Apesar de não ser panfletário ou engajado, Afro Fado é profundamente politizado. Não acena bandeiras de partidos nem hashtags de wokismo mas toca nas feridas da pele com a classe, rigor e sensibilidade de Slow J. Um mágico na capacidade de diálogo entre palavras certeiras e um produção soberba, com uma autenticidade impossível para quem é capaz de esgotar duas MEO Arenas – e mais houvesse.
Os números – perto de 40 mil bilhetes vendidos e recorde de álbum mais ouvido em dia de estreia – podem iludir a percepção sobre o Slow. O que parece norma, continua a ser excepção apesar de Afro Fado aceitar fazer parte de uma grande família de música imaginada a partir do alcatrão dos ringues ou das pedras do passeio, de Dino D’Santiago, a Julinho KSD, Bispo, Ivandro ou até Pedro Mafama.
Não é perda, é construção. Esse todo, um novo normal validado por números de streaming explicativos da realidade, vendas bilhetes e sobretudo aclamação da música portuguesa como uma fotografia incontornável do país, é a luta diária por uma nova identidade sociocultural sem fronteiras étnicas ou barreiras de classe. Pode não votar nas eleições mas enquanto mexe com as emoções, abre os olhos. Tomara que todas as aclamações tivessem a dimensão de Slow J.
Comments are closed.