Bife mal passado – Drake vs Kendrick

drake vs kendrick

Bife mal passado

 

Nos anos 90, os conflitos entre rappers eram guerras entre gangues e acabavam com tiroteios na via pública, balas no peito e sangue no asfalto. Custaram a vida a 2Pac e Notorious B.I.G. O rap era perigoso, polémico e desconfortável. Reproduzia o ambiente das ruas com violência. Tirava vidas mas também as salvava. Para as culturas afroamericanas, socialmente discriminadas e politicamente desconsideradas, o hip-hop foi um megafone. A resistência contracultural projetou-o como fenómeno de massas e bandeira americana. Isso e a transformação tecnológica reconfiguraram a tradição cultural do rap de punchline.

 

A guerra aberta entre Drake e Kendrick Lamar já é a maior desde 2Pac e Biggie, mas pelo menos as balas não passam de versos – o disparo sobre a segurança da mansão de Drake parece ser um rodapé, pelo menos deseja-se que sim. Na sexta-feira, menos de uma hora depois de Drake ter insinuado que Kendrick Lamar bate na mulher Whitney Alford em Family Matters, Meet The Grahams escalou ainda mais a tensão entre ambos. A não ser que tudo isto não passe da encenação de um thriller sangrento, de uma série da Netflix ou de um genial reality show, a guerra aberta passou todos os limites do razoável. Não só diminui os dois como infantiliza uma cultura.

A leviandade com que Drake acusa Lamar de violência doméstica e este contrapōe com a denúncia de ataques predatórios a mulheres menores de idade é chocante. Em The Heart Part 6, Drake nega a versão mas o sarcasmo é sintomático do sentimento de impunidade. “If I was fucking young girls, I promise I’d have been arrested/I’m way too famous for this shit you just suggested”. A egomania resulta do sentimento de superioridade perante o mundo e resulta em irresponsabilidade social.

Ao entrar a pés juntos para se lesionarem mutuamente, Drake e Lamar desperdiçam o poder de empolgar multidões. Os ataques desferidos por ambos são demasiado graves para ser encarados como um recreio e, a comprovarem-se, inserem-se na esfera criminal mas, por outro lado, mostram bem o quanto a liga dos campeōes do rap se transformou numa terra sem lei, sem moral ou escrutínio, em que, nas suas mansōes douradas, se sentem acima das regras.

 

Era bom que a reprovação pudesse ser canalizada sobre a misoginia e sobre a cultura do ódio que este caso também transparece. As mulheres são tratadas como um dano colateral quando são a principal vítima. Não há vencedores, todos já perderam neste duelo.

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