O jazz e as suas mulheres

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O jazz e as suas mulheres

 

São três novos discos provenientes do mesmo tipo sanguíneo de jazz londrino a contrariar um certo vazio de propostas audazes no biénio 23/24. Coincidentes no calendários mas interligados por um mesmo ar, Endlessness de Nala Sinephro, Odyssey de Nubya Garcia e Dance No One’s Watching do Ezra Collective são indispensáveis da recta final de ano.

 

As ligaçōes entrelaçam-se. A saxofonista Nubya Garcia, por exemplo, é convidada do álbum de Nala Sinephro. Endlessness foi apresentado na festa de abertura do renovado Centro de Arte Moderna da Gulbenkian e é um belíssimo pedaço de jazz estelar e espiritual, descendente de Alice Coltrane, e pertencente à mesma linhagem do inesperado e surpreendente New Blue Sun de André 3000. Depois de ter impressionado com o inaugural Space 1.8, editado pela Warp em 2021, a belga de origem caribenha radicada em Londres, onde estudou e se envolveu com a cena local, volta a não pôr limites entre o jazz e partículas electrónicas. A grande beleza de Endlessness, pensado como um ciclo perpétuo de fim e recomeço, está na simplicidade e libertação da técnica.

 

Nubya Garcia é uma das referências do movimento jazz londrino da última década, reactivo através da magia da música a retrocessos políticos como o Brexit, ao avanço dos extremos e ao medo dos contrários. Se há marca nesta corrente, ela está na abertura a outras correntes: o hip-hop das ruas, a electrónica de rádios-pirata como a Rinse FM e o pan-africanismo do afro beat. Tudo isso, o dub e a cumbia fizeram de Source, o primeiro álbum assinado como Nubya Garcia uma festa da diversidade.

 

Odyssey é mais solene e enfático. As cordas relaxam os metais e transmitem uma gravidade que pressente um novo ciclo em Nubya Garcia e talvez no jazz londrino – até agora, um parque de diversōes com intençōes sérias. O teatro das operaçōes é agora mais austero e majestático, enriquecido pelos discursos de Esperanza Spalding em Dawn e We Walk In Gold, de Georgia Anne-Muldrow em defesa de uma liberdade de ser que inevitavelmente parte de um ângulo feminino.

 

O Ezra Collective venceu o Mercury Prize, para melhor álbum britânico, com Freenow, em 2023, mas é Dance No One’s Watching o seu objecto mais completo, plural e inspirado. O corpo está no centro da acção. Música física não-electrónica de fins espirituais e efeitos políticos para dançar a céu aberto.

 

O afro-beat classicista de Fela Kuti é a matéria-prima primordial mas, como sempre, este colectivo é afrocêntrico. As cançōes com Yasmin Lacey e Olivia Dean são de uma espiritualidade imensa, que se confunde com as vozes profundas da soul, de Dusty Springfield a Shirley Bassey. A dada altura, ouve-se uma voz afirmar “you can’t be angry when you dance”. A reciprocidade entre estamina rítmica e energia devolvida pelo público nos concertos explicam a frase através dos quadris e justificam Dance No One’s Watching como um manifesto em que os pretextos servem a música. E o contrário também não é mentira.

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