Concertos com História #15: Miles Davis em Cascais

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Concertos com História #15: Miles Davis em Cascais

 

Não foi apenas um concerto, não foi somente um acontecimento, foi uma senha para a Revolução. A pergunta que se impōe sobre a vinda de Miles Davis ao primeiro Cascais Jazz, em 1971, é: como foi possível?

 

Miles já transcendia a escala do jazz. Era uma figura magnética, da estatura dos grandes ícones do rock como Jimi Hendrix ou da cultura negra como James Brown. Trazê-lo a Portugal era heresia impensável e inalcançável mas a organização liderada por Luis Vilas-Boas foi capaz de o convencer. Para se ter ideia, no ano anterior fizera parte do mesmo cartaz de The Who, The Doors, Sly and the Family Stone, Joni Mitchell e Jimi Hendrix, perante nada menos do que 350 mil espectadores, no Festival da Ilha de Wight.

 

No Pavilhão de Cascais, não cabia nem mais uma alma além das 12 mil pessoas que lotaram a sala. “Para o público, aquela era uma festa de música mas, tão importante quanto isso, era uma oportunidade única de contestação ao regime decrépito que acabaria por cair dois anos e meio após. A música e o Jazz apareciam na sua aparente total liberdade formal como expressão dessa contestação aos valores culturais instituídos, o fado – a desgraça do ser português – o folclore purulento ou as touradas à portuguesa”, descrevia Leonel Santos nas páginas da All Jazz de Abril de 2002.

O cartaz era ambicioso e inigualável – provavelmente, o melhor de sempre em festivais portugueses de jazz: o quarteto de Ornette Coleman (com Charlie Haden, Ed Blackwell e Dewey Redman), Joe Turner e Dexter Gordon, Phil Woods And His European Rhythm Machine (Gordon Beck, Ron Mathewson e Daniel Humair), os Giants Of Jazz (com Dizzy Gillespie, Thelonious Monk, Sonny Stitt, Kai Winding, Al Mckibbon e Art Blakey) e ainda o quarteto nacional The Bridge, formado por Kevin Hoidale nos teclados, o contrabaixista Jean Sarbib, Adrien Ransy na bateria e um saxofonista que dava pelo nome de João Ramos Jorge, mais tarde conhecido como Rão Kyao. No topo, Miles Davis em septeto com Keith Jarrett e Gary Bartz.

“O jazz “eléctrico” de Miles Davis tinha surgido apenas dois anos antes com “Bitches Brew” e a formação que tocou em Cascais continha ainda uma componente “africana”, com dois percussionistas além do baterista. Keith Jarrett foi fantástico! Tocou rodeado de teclados e a cabeleira enorme foi o contraponto às intervenções de Miles. A figura de Miles passeou-se lentamente pelo palco vestido de reflexos prateados e suor. Mesmo para quem já alguma vez tinha ouvido o som de uma trompete, aquela coisa era mesmo muito estranha! Miles era a personificação da modernidade do jazz e o público assim o entendeu”, notava Leonel Santos.

Era como se o jazz tivesse entrado em trabalho de parto em Portugal, deitado em leito de ouro. “Para a maior parte da assistência, maioritariamente jovem, estes dois dias foram o seu baptismo no jazz”, descrevia Leonel Santos. “O que ali se passou marcaria de certa forma os gostos de toda uma geração. Entre Ornette, Miles Davis, Giants of Jazz e Pilll Woods, a música de Miles leva claramente vantagem pela aura de misticismo e modernidade que a envolvia, embora seja de admitir que poucos terão percebido verdadeiramente o que ali se tinha passado. Este não era claramente público do Jazz, mas o Jazz colheu aqui a simpatia de muitos milhares”. Cansados de comer pão com bolos e sedentos de transformação em Portugal. Na assistência, José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Amália Rodrigues não faltavam à chamada, enquanto Dizzy Gillespie se posicionava na plateia para gravar o concerto em cassete.

Desprendido do passado e livre de formalidades, Miles voa para onde quer. O público não tira os olhos do trompete mas tem dificuldade em entender a peculiaridade. O som eléctrico era literal – a guitarra e o piano ligados à corrente. “O piano [clássico] acabou. É um instrumento antiquado. Não quero voltar a ouvi-lo. Pertence a Beethoven – não é um instrumento contemporâneo”, afirmava então.

Miles trocou as voltas à organização do evento quando anunciou a João Braga que queria ser ele, e não Ornette Coleman – que havia realizado a revolução do free-jazz e era então um músico de referência como inovador e pioneiro – a abrir o Cascais Jazz. “Ele disse-me uma coisa que nunca mais esqueci: ‘Este é o primeiro festival de jazz em Portugal e quero ser eu a abri-lo. Os outros só podem tocar a seguir a mim”, citava João Moreira Santos no Blitz.

A vinda esteve rodeada de histórias. Nem poderia ser de outra forma. Exigiu “um chauffeur branco (fardado a rigor, com boné, luvas brancas e dragonas), um “sparring-partner” para servir de saco de pancada às suas ambições de boxeur (na verdade foram dois, porque o primeiro “voltou-se: ao trompetista e João Braga teve de ir à Mouraria arranjar “um tipo mais velho” que não oferecesse mesmo resistência…), uma suite em hotel de luxo, nove quartos simples em hotel de primeira classe, cinco automóveis e uma camioneta para transporte de equipamento (cerca de duas toneladas!)”, relatava esse artigo.

Curiosamente, seria um branco a conhecer os calabouços da PIDE. Charlie Haden,  o contrabaixista de Ornette Coleman, dedicou uma das composições aos movimentos de libertação de Angola, Moçambique e Guiné. Valeu-lhe ser cidadão norte-americano e a intervenção da embaixada dos EUA que convenceram a PIDE a oferecer a viagem grátis, com direito a escolta VIP, até ao Aeroporto da Portela. E nesse momento, a liberdade descolou do solo como o sonho de todos os que projectavam naquela forma tão desassombrada a utopia possível de um novo regime.

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