A música portuguesa da CEE à Bola de Ouro
“Fazer ao Rui Veloso o que Ronaldo fez ao Figo”, prometeu Slow J na apropriação de Não Me Mintas apresentada nos estúdios da Mega Hits. Estávamos em 2017 e The Art of Slowing of Down era o primeiro andar no elevador da glória de João Batista Coelho. Uma figura transversal, consensual e intergeracional como já não se faz. Porquê?
Antes de mais, porque as regras do jogo mudaram. Quando se interroga o que mudou na música ao longo das últimas décadas, a primeira grande transformação está na experiência de ouvir. A dificuldade tornava as coisas especiais. Tudo era complicado. O acesso a instrumentos, a estúdios e ao objecto musical acabado. Um disco rodava dois anos até a agulha se estragar. O efeito de repetição e a distância entre artista e público, pré-redes sociais, endeusava aqueles que por talento e bravura se queriam expressar dessa maneira. Era preciso coragem e carteira para desbloquear acessos vedados à maioria.
O país musical como o conhecemos já existia antes do 25 de abril, mas foi quase tudo inventado a partir dos anos 80. Não por acaso, alguns dos nomes cimeiros que ainda se mantêm, como Xutos & Pontapés e GNR, ressuscitados como os Delfins, eternamente desejados como os Heróis do Mar, ícones como António Variaçōes ou os globais Madredeus – a banda portuguesa mais internacional de sempre – provêm desse tempo fundador em que o país limpava a face depois de décadas de fascismo e atraso. As canções documentavam a nova alvorada do país. “Quero ver Portugal na CEE”, desejavam os GNR em 1981, ainda com Alexandre Soares ao microfone. Que melhor refrão e título para salivar pelo futuro?
Porém, o passado pode ser uma prisão. A experiência auditiva modificou drasticamente a relação com a música, agora mais imediata, banalizada e por isso, menos valorizada, mas há algo em comum entre os tempos actuais e os anos 80 e início dos 90, quando os portugueses enchiam estádios (GNR em Alvalade e nas Antas, o Portugal Ao Vivo e o espectáculo Filhos da Madrugada, de homenagem a José Afonso): a música portuguesa faz parte da vida das pessoas. Com um pequeno grande detalhe. Há mais produção, nomes, géneros, festivais e circuitos. Nem tudo é perfeito, mas podia ser bem pior.
Por falar em mudanças, o que dantes se media através das tabelas de vendas hoje tem como régua os números de streaming e redes. Se o funk brasileiro é a tendência dominante nos ouvidos, a música portuguesa está com uma pujança que até há uns anos podia soar improvável. Nomes como Ivandro, Slow J, Bárbara Bandeira, Bárbara Tinoco, Dillaz, Pedro Mafama, Plutónio, Wet Bed Gang, Julinho KSD e T-Rex estão entre os mais ouvidos das últimas estaçōes. Citando T-Rex ao receber o prémio de Artista do Ano nos Prémios Play, “as ruas venceram”. A música portuguesa mais ouvida exprime uma transformação no gosto colectivo e provém de artistas com noção de carreira. Não se tratam apenas de êxitos avulsos. Provavelmente, dentro de alguns anos estes ainda aqui estarão, e outros entretanto chegarão. Não há razōes para o fatalismo. A janela nunca se fechou e enquanto estiver aberta, o ar vai continuar a renovar-se.
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