2022 – um passeio entre sirenes, colunas e AirPods
Era tão bom, não foi? Depois de dois anos de incerteza, desespero, falsos arranques e recomeços adiados, 2022 tinha escrito na testa “regresso à normalidade”. Na madrugada de 24 de fevereiro, ficou selado que não seria assim. Talvez já ninguém imaginasse uma guerra destas, bélica, com armas, sangue e ossos, mas ela irrompeu e com implicaçōes muito além do antigo império soviético. Restabelecida a anormalidade, o optimismo cedeu perante a incerteza e os últimos meses foram novo teste de sobrevivência à sanidade, ao amor e à paz. Fantasmas que se julgavam enterrados, como a guerra ou a extrema-direita, ressuscitaram para tirar a paz e o sono, mas não tiveram o privilégio de sabotar a alegria, o prazer e o sonho. Nem o combate, a resistência e a oposição. A esperança é um bem de primeira necessidade, e tem na música um grande propulsor.
Contra os canhōes, dançar, dançar. Pelo terceiro ano consecutivo, Bad Bunny foi o mais ouvido no Spotify, a plataforma de streaming de referência. Que quer isto dizer? Muito. Há uma revolução cultural a acontecer e 2022 foi explícito na demonstração. Concertos inesquecíveis de Stromae no NOS Alive, C. Tangana no Super Bock Super Rock e Rosália na Altice Arena disseram-nos que a música popular está a ficar mais ampla, larga, vasta. Quando fora a última vez em que um francófono ocupou um lugar cimeiro num festival internacional? Não há memória. Espanhóis e latinos no mundo? São muitos, e conseguiram criar um movimento capaz de provocar uma ruptura na habitual hegemonia anglosaxónica. O mundo está a mudar, sim, com os francófonos, latinos, brasileiros, centro-africanos e até os coreanos a trazer as suas modernizaçōes digitais da etnicidade para o centro dos acontecimentos e a mudar os centro de decisão.
Foi um verão quente, de facto. Festivais esgotados (NOS Primavera Sound, Rock In Rio, NOS Alive, Paredes de Coura, Kalorama, Boom, EDP Cool Jazz), ou perto disso, e sobretudo um desejo irresistível de celebrar a vida com o outro, depois de dois anos sem festivais, nem possibilidades de grandes ajuntamentos. Em Algés, o grande acontecimento foi o regresso dos Da Weasel – o maior em impacto e dimensão de que há memória de uma banda portuguesa. Nunca uma banda portuguesa ocupara um lugar tão destacado na história de um festival tão internacional como o NOS Alive. Em abril, uma estreia em Lisboa com a chegada do Sónar, um festival itinerante ligado à electrónica e à experimentação que, naturalmente, absorveu a cena local para juntar ao cartaz internacional. Em setembro, outra novidade com a estreia do Kalorama, nos terrenos da Bela Vista há muito exclusivos do Rock In Rio, com um cartaz de peso (Nick Cave, Arctic Monkeys, Disclosure, Chemical Brothers) a fazer mossa à concorrência. O braço português do Cala Mijas veio para ficar e 2023 já está na calha com Arcade Fire, Florence + The Machine, Foals, Capitão Fausto e Dino D’Santiago, entre outros.
Talvez a necessidade de festejar em grupo ajude a explicar a “loucura” na corrida aos bilhetes para os concertos dos Coldplay em Coimbra. Só parou no quatro o número de datas em maio – uma das pesquisas principais dos portugueses no Google em 2022. Sem precedentes a procura, mas longe de ser caso único nos últimos meses. O anúncio de concertos dos Rammstein (Estádio da Luz, junho) e Harry Styles (Passeio Marítimo de Algés, julho) foi respondido com uma procura avassaladora – ainda restam alguns bilhetes para a digressão de regresso dos alemães a Portugal.
2022 começou com noites diabólicas como a dos Idles no Coliseu dos Recreios – o concerto certo no momento certo, depois de tanto tempo amordaçados – e acabou com a notícia de inúmeras digressōes internacionais canceladas devido ao aumento exponencial de custos, sobretudo devido aos efeitos da guerra na Ucrânia. Na vida como na música, não está fácil a vida da classe média.
O fosso entre grandes e pequenos, muito seguidos e razoavelmente desconhecidos, cavou-se mas, por outro lado, o ecossistema da música pode ser tão interdependente entre si, como fechado em bolhas. A segmentação de festivais, a diversidade de programaçōes, e até uma descentralização crescente, quer em Portugal continental, quer nas ilhas, provam que o outro lado existe e é possível, mas exige estoicismo, coração e apoios. A possível perda de acontecimentos como os Jardins Efémeros, em Viseu, por falta de verbas da DGArtes é não só uma péssima notícia como uma erva daninha a alastrar. Os pequenos alimentam os maiores, arriscando antes dos outros, instigando a transformação de mentalidades, ocupando-se da formação de novos públicos. Sem esses pequenos laboratórios de mudança, a cadeia perde um dos seus elos.
O som das bombas no outro extremo da Europa não será de silêncio atlântico. Em 2023, a música continuará a amortecer a queda, de uma forma ou de outra. É inevitável que a recessão faça estragos mas concertos ou festivais continuarão a ser uma tábua de salvação. E o país a reagir a profundas transformações sociais. O som português cada vez contaminado pela diáspora e pela reconstrução de memórias profundas. Um novo Brasil cada vez mais próximo. E uma diluição cada vez maior de géneros a contraplacar a normalização algorítmica. Que tempo para se estar vivo.
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